terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"Uma tese é uma tese"



Uma tese é uma tese

MARIO PRATA
Quarta-feira, 7 de outubro de 1998 CADERNO 2 - O Estado de S. Paulo

"Sabe tese, de faculdade? Aquela que defendem? Com unhas e dentes? É dessa tese que eu estou falando. Você deve conhecer pelo menos uma pessoa que já defendeu uma tese. Ou esteja defendendo. Sim, uma tese é defendida. Ela é feita para ser atacada pela banca, que são aquelas pessoas que gostam de botar banca.


As teses são todas maravilhosas. Em tese. Você acompanha uma pessoa meses, anos, séculos, defendendo uma tese. Palpitantes assuntos. Tem tese que não acaba nunca, que acompanha o elemento para a velhice. Tem até teses pós-morte.

O mais interessante na tese é que, quando nos contam, são maravilhosas, intrigantes. A gente fica curiosa, acompanha o sofrimento do autor, anos a fio. Aí ele publica, te dá uma cópia e é sempre - sempre - uma decepção. Em tese. Impossível ler uma tese de cabo a rabo.

São chatíssimas. É uma pena que as teses sejam escritas apenas para o julgamento da banca circunspecta, sisuda e compenetrada em si mesma. E nós?

Sim, porque os assuntos, já disse, são maravilhosos, cativantes, as pessoas são inteligentíssimas. Temas do arco-da-velha. Mas toda tese fica no rodapé da história. Pra que tanto sic e tanto apud? Sic me lembra o Pasquim e apud não parece candidato do PFL para vereador? Apud Neto.

Escrever uma tese é quase um voto de pobreza que a pessoa se autodecreta. O mundo pára, o dinheiro entra apertado, os filhos são abandonados, o marido que se vire. Estou acabando a tese. Essa frase significa que a pessoa vai sair do mundo. Não por alguns dias, mas anos. Tem gente que nunca mais volta.

E, depois de terminada a tese, tem a revisão da tese, depois tem a defesa da tese. E, depois da defesa, tem a publicação. E, é claro, intelectual que se preze, logo em seguida embarca noutra tese. São os profissionais, em tese. O pior é quando convidam a gente para assistir à defesa. Meu Deus, que sono. Não em tese, na prática mesmo.

Orientados e orientandos (que nomes atuais!) são unânimes em afirmar que toda tese tem de ser - tem de ser! - daquele jeito. É pra não entender, mesmo. Tem de ser formatada assim. Que na Sorbonne é assim, que em Coimbra também. Na Sorbonne, desde 1257. Em Coimbra, mais moderna, desde 1290. Em tese (e na prática) são 700 anos de muita tese e pouca prática.

Acho que, nas teses, tinha de ter uma norma em que, além da tese, o elemento teria de fazer também uma tesão (tese grande). Ou seja, uma versão para nós, pobres teóricos ignorantes que não votamos no Apud Neto.

Ou seja, o elemento (ou a elementa) passa a vida a estudar um assunto que nos interessa e nada. Pra quê? Pra virar mestre, doutor? E daí? Se ele estudou tanto aquilo, acho impossível que ele não queira que a gente saiba a que conclusões chegou. Mas jamais saberemos onde fica o bicho da goiaba quando não é tempo de goiaba. No bolso do Apud Neto?

Tem gente que vai para os Estados Unidos, para a Europa, para terminar a tese. Vão lá nas fontes. Descobrem maravilhas. E a gente não fica sabendo de nada. Só aqueles sisudos da banca. E o cara dá logo um dez com louvor. Louvor para quem? Que exaltação, que encômio é isso?

E tem mais: as bolsas para os que defendem as teses são uma pobreza. Tem viagens, compra de livros caros, horas na Internet da vida, separações, pensão para os filhos que a mulher levou embora. É, defender uma tese é mesmo um voto de pobreza, já diria São Francisco de Assis. Em tese.

Tenho um casal de amigos que há uns dez anos prepara suas teses. Cada um, uma. Dia desses a filha, de 10 anos, no café da manhã, ameaçou:

- Não vou mais estudar! Não vou mais na escola.

Os dois pararam - momentaneamente - de pensar nas teses.

- O quê? Pirou?

- Quero estudar mais, não. Olha vocês dois. Não fazem mais nada na vida. É só a tese, a tese, a tese. Não pode comprar bicicleta por causa da tese. A gente não pode ir para a praia por causa da tese. Tudo é pra quando acabar a tese. Até trocar o pano do sofá. Se eu estudar vou acabar numa tese. Quero estudar mais, não. Não me deixam nem mexer mais no computador. Vocês acham mesmo que eu vou deletar a tese de vocês?

Pensando bem, até que não é uma má idéia!

Quando é que alguém vai ter a prática idéia de escrever uma tese sobre a tese? Ou uma outra sobre a vida nos rodapés da história?

Acho que seria uma tesão."

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Profissão: Cientista

Há alguns meses atrás, tive a oportunidade de ir em um  Simpósio de Células Tronco realizado no Instituto de Química na USP e foi uma oportunidade única de conhecer o trabalho promissor de diversos cientistas da área. Dentre eles, uma palestra me chamou muito a atenção, não só pela relevância do tópico em questão, mas também pelo fato de expor o trabalho de um grupo que estuda a mesma proteína que eu. Em novembro, então, os primeiros resultados deste grupo foram publicados na revista Cell, uma das revistas científicas de maior impacto do mundo, tendo inclusive estampado a capa da publicação. Pra quem quiser saber um pouco mais sobre este artigo, o site G1 publicou uma matéria bastante completa sobre essa pesquisa e o impacto da mesma não só sobre as pesquisas em autismo, especialmente Síndrome de Rett, como também na pesquisa de doenças ligadas ao cromossomo X utilizando-se como modelo de estudo células iPS (células tronco pluripotentes induzidas) humanas . Pretendo também fazer um resumo deste artigo aqui no blog, mas isso é assunto para outra postagem.
Encontrei então o blog do Alysson Muotri, chefe do laboratório responsável pela publicação que comentei, e perdi horas e horas (entre um experimento e outro), lendo. Aliás, quem quiser dar uma olhada, vale muito a pena! Basta clicar aqui.
Entre os diversos textos, um que gostei muito foi sobre o perfil dos cientistas e como a ciência realmente é. Tomei a liberdade de publicar o texto aqui e inserir meus comentários abaixo:


“Existem alguns cientistas que são naturalmente obcecados. São esses os que possuem uma ansiedade que não passa nunca. Ansiedade que só consegue ser levemente atenuada pelo prazer de uma descoberta. Tudo começa novamente instantes depois.
O que me faz acordar cedo todos os dias é a esperança de que hoje eu vou ter a reposta para a pergunta que busco. Então eu terei mais questões para ir atrás. É um desafio diário, você quer saber por que isso funciona ou como isso funciona. Você fica obcecado por um problema e não consegue parar de trabalhar ou de pensar naquilo até você chegar à descoberta, à resposta para sua pergunta. No momento da descoberta você é único, é a única pessoa no mundo que sabe daquilo, que tem aquele conhecimento. A obsessão é ainda maior se a motivação está na cura de uma doença ou se o cientista tem uma razão pessoal para o problema estudado. Muitos cientistas são movidos pela paixão de descobrir algo que auxilie a vida de milhares de pessoas. Outros buscam fama ou reconhecimento. A vaidade faz parte da personalidade do cientista.
Ciência não é fácil e não é para qualquer um. Não existe ninguém que te acompanha ou motiva no laboratório a cada instante. Ninguém marca ponto quando chega ou sai. Você acha que está livre, mas o problema te acompanha. Você fica preso e ansioso, sempre. Você não relaxa nunca. Não existe final de semana, feriado, Natal, cedo ou tarde. Esses são conceitos temporais do mundo exterior ao laboratório. Ao final de um período, você será julgado pelos resultados produzidos. Ninguém está nem aí se você ficou trabalhando por doze ou duas horas. Os melhores cientistas trabalham duro. Os medíocres também trabalham duro. O trabalho por longas horas do dia não é o diferencial, mas é imprescindível.
Chefes de laboratório são, em geral, cientistas obcecados. Outros derivam, acabam partindo para carreiras menos obsessivas ou permanecem ligados à ciência de forma superficial. Os que ficam acabam contratando alunos e pesquisadores para acelerar a pesquisa. O sucesso dos alunos influencia o sucesso do pesquisador principal, que se reverte em melhores condições para o laboratório. Por isso mesmo, o interesse é que todos os membros do laboratório sejam produtivos. Ao contrário do Brasil, nos EUA a situação é ainda mais complicada, pois o salário dos pesquisadores muitas vezes vem direto dos projetos. Ou seja, o salário não é estável e depende da produtividade. Avaliações de desempenho acontecem anualmente. É estressante, mas o sistema acaba por se autoajustar e eliminar os mais acomodados.
Esse estresse e essa obsessão muitas vezes tornam o cientista frio e direto. Em ciência, ao contrário do que ocorre no mundo fora do laboratório, a forma direta de criticar e apontar os erros é corriqueira e não deve ser vista como algo pessoal. Cientistas de fato até gostam de críticas; mesmo as não construtivas são bem-vindas. Obviamente que existem limites, e um comportamento negativo ou pejorativo por parte dos cientistas mais seniores afasta jovens estudantes.
Estudantes são a locomotiva dos laboratórios. São eles que, literalmente, colocam a mão na massa e realizam os experimentos. Talvez mais importante seja o fato de que novos estudantes chegam sem os vícios daqueles que estão no mesmo laboratório por mais tempo. Essa rotatividade é essencial para manter o dinamismo de ideias e projetos, trazendo perspectivas únicas. Em algumas ocasiões, o estudante acaba por estabelecer caminhos próprios, criando novas linhas de pesquisa.
Estudantes muitas vezes têm um projeto individual, menos ambicioso, que faz parte de um projeto mais abrangente, desenhado pelo chefe do laboratório. Noutras vezes, fazem parte de uma rede de colaboração. Questões fundamentais ou de impacto direto para a humanidade atraem investimentos maiores e têm maior competitividade. Quando isso acontece, é comum encontrar diversos grupos trabalhando numa mesma área. Eventualmente um dos grupos chega à resposta antes. Eles publicam em revistas científicas de maior impacto, e só resta aos competidores a publicação em revistas inferiores, se possível. Essa competição acadêmica pelo conhecimento é feroz. Trabalho de anos pode perder o valor da noite pro dia. Carreiras inteiras podem ser desmanteladas por uma semana de diferença. Ver isso acontecendo na frente dos seus olhos é frustrante.
É interessante notar que os experimentos realizados no laboratório serão eventualmente incorporados em livros didáticos no futuro. A responsabilidade e o prazer de saber que você é responsável pelo conhecimento e aprendizado de outros é extremamente gratificante para alguns cientistas.
O laboratório é um mundo que a maioria das pessoas, lendo esta coluna, nunca vivenciou. Milhares de outros fatores estão envolvidos, como os dramas pessoais, a relação com a mídia, com a religião, o convívio dentro do laboratório etc. Infelizmente, nunca ninguém escreveu sobre isso ou se preocupou em representar esse mundo. Sabemos desde pequeno o que um advogado faz, o dia-a-dia de um médico, um policial etc., mas o cientista é sempre caricato. Em geral, associado a algum experimento maluco ou antiético.
Fico feliz em poder terminar esse texto receitando um documentário exatamente sobre o cotidiano de um laboratório de biologia molecular. “Naturally Obsessed: the making of a scientist” (http://www.naturallyobsessed.com) foi produzido por Richard e Carole Rifkind. Eles frequentaram o ambiente de um laboratório de pesquisa na Universidade Columbia, em Nova York, por três anos. A edição do filme levou mais de um ano e finalmente está pronta. É a história de como a ciência é feita, quem são os cientistas, as frustrações, a paixão e o prazer.
Infelizmente, não acredito que o filme chegue às telonas. Questiono se é falta de interesse do público, pois acho que muita gente tem interesse em saber como o conhecimento é produzido e aplicado. De qualquer forma, é um começo que deve estimular projetos semelhantes em outras partes do globo.”

Não poderia concordar mais com tudo o que foi dito até aqui. Sinto uma certa dificuldade em explicar para qualquer pessoa que não seja da área o que um cientista faz. A maioria das pessoas tem aquela visão caricaturada, de que temos alguns parafusos meio frouxos, que somos bitolados (o que é até verdade na maioria das vezes), e que fazemos um ou dois experimentos para então descobrirmos algo muito importante, como a cura do câncer ou de algum vírus estranho introduzido na terra por alienígenas. A verdade é que por trás desta visão romanceada se escondem anos e anos de tentativas e erros, de padronização de experimentos, de respostas que nos levam a mais perguntas até que, por fim, descobrimos a pontinha do iceberg. Não a cura do câncer, mas uma forma de regulação de uma proteína envolvida na proliferação celular, por exemplo. E assim o conhecimento é construído, com cada pequena descoberta vamos construindo um quebra cabeças sem fim, por mais que cada peça isolada pareça sem importância.
Achei interessante também esta caracterização do cientista como alguém obcecado. Os maiores cientistas que conheci eram justamente pessoas que não se desligavam nunca de suas pesquisas. No trailer do filme indicado, um dos pesquisadores até fala que quase todo cientista tem um pouco de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), ou seja, sua pesquisa vira uma obsessão e quanto mais você sabe, mais quer saber. Isso quer dizer que somos loucos? Não, apenas que podemos estar no cinema vendo um filme, passeando com o cachorro ou até mesmo dormindo (sim, isso já aconteceu comigo!!), e ainda sim estarmos pensando na nossa pesquisa, no que estamos fazendo de errado quando os experimentos não vão como queríamos, ou em quais serão os próximos passos caso os experimentos tenham dado certo.
Como dito no texto também, nessa profissão ninguém está marcando quantas horas trabalhamos e quantos experimentos estamos fazendo, o que existe é uma cobrança pessoal de descobrir, de ir atrás e de publicar seus resultados. Por isso não é difícil você encontrar alguém em um laboratório às 9 horas da noite de uma sexta-feira, ou num fim de semana. Ganhamos hora extra? Não, mas sabemos que para os experimentos não existem horas ou dias certos. Se a célula estiver na confluência exata pra se começar um experimento justo no meio do feriado, então no feriado será. Por três anos trabalhei com genética animal no meu IC com o objetivo de criar uma linhagem isogênica de uma espécie de mosca-das-frutas para posterior liberação de machos inférteis na natureza. Tinha que coletar os ovos, separar as moscas que nasceram em casais e trocar o alimento a cada dois dias, sem exceções. Foram 3 anos sem férias ou feriados, até em véspera de natal e ano novo lá estava eu no laboratório. O que recompensa é depois de todo o trabalho você alcançar o objetivo.
O que torna alguém um bom cientista, além da obsessão? Na minha opinião, a curiosidade é uma das características principais. Sempre querer saber mais... porquê, como, quando? Nunca deixar de se perguntar, por mais absurda que pareça a pergunta. Outra característica importantíssima, é a mente aberta. Em primeiro lugar, não se deve achar que só porque algo é difícil de ser feito, é impossível. Aliás, o que é difícil deve ser encarado como um desafio e, por isso mesmo, algo que deve ser almejado. As coisas as quais estamos acostumados, sejam elas técnicas ou formas de pensamento, devem ser mantidas, mas sempre temos que buscar incrementá-las com coisas novas, para nosso crescimento profissional e pessoal. Do contrário, corremos o risco de ficar pra trás, desatualizados.