quinta-feira, 26 de abril de 2012

microRNAs: O que são e para que servem?



Hoje vim falar sobre um assunto que tem ganhado cada vez mais atenção da comunidade científica, tanto por sua descoberta relativamente recente quanto pelos desdobramentos de suas potenciais aplicações na pesquisa básica e na terapia.

Como todos sabem, os genes, os quais encontram-se no DNA, são transcritos em RNAs que são então traduzidos em proteínas. Essas proteínas podem possuir diversas funções estruturais, enzimáticas, entre outras. Certo? Em parte!! Com o sequenciamento do genoma humano há cerca de uma década atrás, foi observado que apenas uma pequena parte do genoma humano (cerca de 1%) é constituído por genes capazes de gerarem RNA codificantes, ou seja, RNAs que codificam para proteínas. Opa!! E os outros 98%?? Por muitos anos, devido à função de sua maior parte ser desconhecida, ganharam o nome de "DNA-lixo". Um dado interessante, é que ao se observar a quantidade de genes codificantes entre as diferentes espécies de organismos eucariontes, foi constatado que não há uma variação muito grande quando comparados, independentemente do nível de complexidade do organismo. Ou seja, seres humanos possuem cerca de 31,7 megabases (Mb) de sequências codificantes (CDS) no DNA, enquanto que uma espécie de verme possui 25,4 Mb e uma espécie de mosca-das-frutas possui 21,8Mb de CDS. No entanto, o tamanho total do genoma entre essas espécies varia abissalmente, sendo de 2866Mb em humanos, 100.3Mb em vermes, e 132Mb em moscas-das-frutas. Assim, os cientistas descobriram que quanto mais complexo o organismo, maior a quantidade de "DNA-lixo" ele tem, evidenciando que este DNA aparentemente sem função poderia ter sido evolutivamente importante para o surgimento de espécies mais complexas.

Aos poucos, diversos estudos foram demonstrando que este DNA aparentemente sem função era essencial para o funcionamento correto da célula, como por exemplo na regulação da expressão dos genes codificantes. E é aí que entram os microRNAs, os quais são pequenas sequências de RNA que não são traduzidas em proteínas, mas que têm função na regulação dos RNAs codificantes, ou seja: RNAs regulando RNAs!! Mas não fique aí animadinho pensando que somente de microRNAs é feito o "DNA-lixo". Na verdade, microRNAs correspondem somente à uma pequeníssima porção de todo aquele DNA ainda com função desconhecida. Estima-se que apenas 1 a 3% dos nossos genes correspondam aos microRNAs. Sabe-se hoje em dia que grande parte deste "DNA-lixo" é constituído por sequências repetitivas, elementos regulatórios, entre outros.

Mas se a quantidade de microRNAs é relativamente tão pequena (já foram identificados 1921 microRNAs maduros em humanos até o presente momento), porque estudá-los? Porque estima-se que eles regulam a expressão de 30 até 60% dos RNAs codificantes em humanos!!

E toda essa história começou com o estudo de nemátodas C. elegans, os quais passam por quatro estágios larvais antes de atingirem o estágio adulto. No início dos anos 90, já sabia-se que vermes mutantes para o gene lin-4 permaneciam no primeiro estágio larval, sem nunca atingir o estágio adulto. Por outro lado, vermes com perda de função de lin-14 apresentavam o fenótipo contrário, ou seja, escapavam à primeira fase larval. Além disto, o ganho de função de lin-14, ou seja, a super-expressão deste gene, ocasiona fenótipo semelhante ao da perda de função de lin-4. Adicionalmente, sabia-se também que a expressão do RNA de lin-14 não se altera durante o desenvolvimento, ao contrário do que ocorre com a expressão de sua proteína, e experimentos com a porção 3’UTR (porção não traduzida do RNA na extremidade 3’) demonstraram que a mesma é essencial para o silenciamento de lin-14 nos diferentes estágios do desenvolvimento. Juntando todas as peças do quebra-cabeças, em 1993 foi descoberto que o RNA de lin-4 (o qual não traduz para uma proteína) liga-se à porção 3’UTR de lin-14, impedindo sua tradução. Assim, o aumento na expressão de lin-4 e a consequente diminuição da expressão de lin-14 no final da primeira fase larval é essencial para o prosseguimento do desenvolvimento normal nestes animais.

Num primeiro momento, essa descoberta não ganhou muita atenção da comunidade científica por acreditar-se que representava um caso isolado e presente apenas nestes vermes. Nos anos seguintes, porém, diversos outros grupos foram reconhecendo interações semelhantes entre RNAs não codificantes e a porção 3’ UTR de RNAs codificantes de maneira sequencia-específica, levando à não-tradução desta última. Em 2001, o primeiro estudo identificando microRNAs em outros organismos, como humanos e drosófilas, foi publicado e então cunhou-se o termo microRNAs.

Atualmente, sabe-se que estes pequenos RNAs são bastante conservados, estando presentes na maioria dos organismos eucariotos. Os microRNAs têm uma importante função na diferenciação e manutenção do estado diferenciado dos diversos tipos celulares de um organismo, estando envolvidos em importantes processos celulares como apoptose, angiogênese, metilação do DNA, entre outros.

E porque é tão importante estudar estes pequenos RNAs? Porque um microRNA é capaz de regular a expressão de diversos genes, e a perda de função de um microRNA, portanto, pode ter consequências desastrosas no organismo. Como exemplo, temos o microRNA miR-29b, o qual regula a expressão de diversos proto-oncogenes, ou seja, genes com importante função nas células em um determinado tecido ou estágio do desenvolvimento, mas que quando super-expressos podem levar à proliferação celular exacerbada, à inibição da apoptose, entre outros fenótipos, levando ao desenvolvimento tumoral. Assim, já foi demonstrado que este miRNA está pouco expresso em células de câncer de pulmão, levando à super-expressão de DNMT3B, um importante alvo envolvido na metilação de regiões promotoras de diversos genes. Estudos têm demonstrado que a expressão aberrante de microRNAs está envolvida com diversas outras malignidades além do câncer, como Alzheimer, esquizofrenia, diabetes, entre outras. 

Para um melhor entendimento, encontrei este vídeo super didático no Youtube que mostra a biogênese dos microRNAs, funcionamento e suas implicações na terapia.


Neste vídeo, podemos ver primeiro a biogênese dos microRNAs. O mesmo é transcrito a partir do DNA através de uma RNA polimerase II, o RNA forma uma estrutura em forma de grampo (pri-miRNA), o qual é processado por uma RNAse (Drosha) ainda no núcleo, formando o pre-miR e este então é exportado para o citoplasma, onde sofre outra clivagem através da ação da Dicer, uma outra RNAse. Os duplexes de RNA formados após o processamento da Dicer são então carregados num complexo ribonucleoproteico, o complexo RISC (RNA-induced silencing complex, ou complexo de silenciamento induzido por RNA), onde somente uma das fitas do duplex permanecerá. Esta fita, ao ligar-se a uma região 3'UTR de um RNA mensageiro complementar à ela, bloqueará a tradução da mesma. A seguir, vemos as possíveis implicações destes pequenos RNAs na terapia, como por exemplo ao inibir a expressão de oncomiRs (microRNAs super-expressos em células tumorais), levando à re-expressão de importantes genes supressores tumorais antes silenciados. O contrário também é possível, com a introdução de microRNAs supressores tumorais antes silenciados em um determinado tumor.

Pra quem se interessar pelo assunto e quiser saber mais, indico uma revisão bem completa a respeito:
Lee YS & Dutta A. MicroRNAs in Cancer. Annu Rev Pathol. 2009; 4: 199-227.